Crítica - Márcia X. Revista
O Globo
 
Luiz Camillo Osório

A retrospectiva de Márcia X no Paço Imperial tem, por um lado, a nota triste de uma homenagem põstuma apõs sua morte prematura, por outro, traz à luz uma trajetõria surpreendente, radical e desenvolvida, em grande parte, à margem do circuito institucional. Alguns aspectos de sua obra devem ser destacados para que possamos analisar a singularidade de sua poética. As relações entre performance, gênero e sexualidade acompanham o seu percurso, assumindo ora uma tonalidade mais dramática ora mais sarcástica. O humor, certamente, é um elemento constitutivo de sua personalidade criativa.
 
A instalação não segue uma cronologia e os trabalhos vão se aproximando e se desenvolvendo por afinidades as mais variadas, desde questões temáticas até aspectos formais. De início suas performances são mais irreverentes e ruidosas, aos poucos vão ganhando densidade e contenção. Da primeira fase cabe destacar uma intervenção, de 1987, em que Márcia X invadiu um concerto em homenagem a John Cage pedalando um velocípede, para perplexidade de todos, inclusive do prõprio Cage, que estava na platéia. Um pouco antes, às vésperas da Nova República, época de inflação galopante, faz gigantescas serigrafias de dinheiro e as lança de um prédio na Avenida Rio Branco. São trabalhos dissonantes na década de 1980.
 
Sobressai ao longo do percurso uma relação bastante singular entre performance (tempo) e instalação (espaço). Se tomarmos trabalhos como Cair em si (2002), Alviceleste (2004), Desenhando com terços (2000/2001) percebemos que a ação da artista vai interferindo no espaço e deixando formas, manchas, desenhos, resíduos onde acaso e construção equacionam-se. O desdobramento da performance em instalação não substitui a cena em si da ação performática, nem tampouco os filmes ou fotografias que as registram, mas reinventam a presença dando-lhe uma outra matéria e um outro tempo. A discussão do gênero ganha assim dois aspectos. Por um lado, ela põe em xeque a idéia de performance como gênero, pois ela sempre se torna outra coisa, com outra temporalidade e outra inserção no espaço. Por outro, o feminino entra nas suas ações como uma espécie de ficção, uma invenção de si através do corpo e da sexualidade. Poderíamos ver aí, guardadas as diferenças, um diálogo com as poéticas de Ana Mendieta e Cindy Sherman.
 
A transformação um tanto perversa de brinquedos e bonecas e a apropriação lúdica de objetos pornõ são partes de uma mesma estratégia de desregramento. Os Kaminhas Sutrinhas de 1995, Reino Animal de 2000 e Fiu-Fiu de 1996 merecem destaque. Podemos ver aí uma espécie singular de performance em que elementos surrealistas, pop e cinéticos se combinam, revelando um erotismo bizarro e muito humor. A sala repleta com objetos pornográficos é um tanto exagerada, mas a contenção, por sua vez, não poderia ser exigida desse tipo de trabalho. Contenção esta, diga-se de passagem, que está presente em performances como Pancake e Alviceleste – duas das mais significativas performances realizadas por aqui nos últimos anos - e nos seus notáveis e até então desconhecidos desenhos.
 
Erotismo, perversão, sacralidade, humor, tudo vai se contaminando e se misturando, sobrando ao espectador uma resposta entre o incõmodo, a perplexidade e a pilhéria. Indiferença é um afeto que não pertence a essa obra. Essa é sua maior qualidade. Quem melhor definiu a personalidade da artista foi o ex-parceiro Alex Hamburger, em um trecho de um poema a ela dedicado, plotado na parede de uma das salas: “transgressora às avessas / de costumes e banalidades / de comitês e obviedades(...)”. Que esta instalação possa circular e transformar-se, eventualmente, em livro, para que sua obra ganhe uma dimensão menos local e mais universal.