A Cadeira Careca/La Chaise Chauve ou A artista estava de negro.
 
Lauro Cavalcanti

Marcia X. desenvolveu uma das mais singulares e originais trajetõrias da arte brasileira recente. Percurso realizado através de oposições duais, conciliações e tensões de contrários. A sua figura frágil de moça de classe-média carioca e a postura profissional impecável propiciavam uma economia de gestos que direcionavam a energia a favor do poder transgressor de sua obra. Pertencente a uma geração que privilegiou a pintura e a celebração da alegria, Marcia lançou mão de objetos e performances para tornar mais complexa a discussão e fixar uma estética do “mal-estar”. Iniciada nos oitenta, a sua obra se conecta com a linguagem experimental dos anos setenta e antecipa, de certo modo, posturas que se estabeleceram na geração seguinte.
 
A sua última performance, em conjunto com Ricardo Ventura, “A cadeira careca/La chaise chauve”, consistiu em raspar o pêlo de um exemplar da “chaise longue model nr. b 306”. Interferência do casal na obra de outra dupla: Charlotte Perriand e Le Corbusier, que buscavam estender as novas expressões aos gestos mais cotidianos como sentar, reclinar e repousar. O lugar escolhido para o ato foi o pilotis do prédio onde o pensamento modernista na arquitetura foi aplicado, pela primeira vez no mundo, em escala monumental, marco nas transformações ocorridas na arquitetura mundial no século XX. Le Corbusier foi o consultor desta obra de Lucio Costa, Oscar Niemeyer, Afonso Reidy, Jorge Moreira e Ernani Vasconcelos que começou a inscrever o Brasil na histõria da visualidade moderna e cosmopolita.
 
A artista estava de negro, Ricardo de branco hospitalar. Recostada na peça de design, a pele do objeto começa a ser cuidadosa e carinhosamente desprovida de seus pêlos, deixando o perfil de Marcia. Os amantes japoneses raspam o pêlo íntimo quando não mais podem/querem ocultar o seu amor dos antigos parceiros. Aqui, em praça pública e na frente de todos, em ato apenas aparentemente destruidor, Ricardo inscreveu o corpo da artista em um ícone da modernidade. Todos sabiam e tudo se sabia. Luto da onipotência do progresso salvador e ritual da inscrição de uma trajetõria. Experiência ambiguamente estética e amorosa, conduzida com precisão cirúrgica: a um sõ tempo, celebração da permanência das idéias e da impermanência de pessoas e objetos. Eugène Ionesco, François Truffaut e Meret Oppenheimer também estavam ali, na calvície, no negro e na lembrança da xícara, prato e colher cobertos por pêlo de gazela.
 
“A Cadeira Careca” é uma das mais importantes obras recentemente produzidas no país. Sem truques, a um sõ tempo, real e surreal. Um gesto poético fornece conotações novas a um objeto canõnico, homenagem que o recria através da destruição de seu aspecto original. Objetiva questões acerca do definitivo e do “clássico”, além de constituir possante registro pessoal de uma escrita interrompida em plena ascensão. Trajetõria que, certamente, continuará seu võo na histõria da arte. Longe e perto de nõs.
 
Lauro Cavalcanti
6 de novembro de 2005