X-Rated (duas ou três coisas qu'eu sei dela)
Item-4, novembro de 1996
 
Sérgio Bessa

Ao cair da tarde, em meio ao alvoroço de um desses dias carregados de tarefas conflitantes, tomando café com uma (não tão prõxima) amiga, a certa altura ela aventura: "meus dois artistas prediletos são o Leo[nilson] e o Felix (Gonzalez-Torres)". Noto uma certa morbidez em tal pronunciamento (Gonzalez-Torres morreu na semana anterior ao nosso encontro) e deixo-o passar desapercebido, mas o que vem a seguir realmente me atiça os sensores - eu tenho que reagir! Ela diz: "eles são dois poetas".
 
É inútil entretanto me engajar em qualquer discussão com esta pessoa, pois ela faz parte deste contingente intelectual que contínua e insistentemente recorre ao termo "poético" para caracterizar o que não podem, ou não querem, discutir abertamente. Seria um trabalho acadêmico interessante compilar todos os termos (tão vazios!) que esta casta intelectual usa com total desrespeito à precisão e ao rigor crítico (um outro termo de grande uso é "intuitivo"), mas não é esse o meu propõsito. Como uma introdução, entretanto, me é de certa vantagem considerar o termo "poético".
 
A referida amiga, uma artista plástica em sua prõpria maneira de ser, faz uso constante do termo "poético" para descrever o seu prõprio trabalho, como por exemplo: "eu uso diversos materiais para criar um espaço poético". Eu não faço a menor idéia do que possa significar em bom e são português o termo "poético" em tais circunstâncias, mas posso dizer com uma certa margem de segurança o que ele esconde; no caso de Leonilson, por exemplo, serviu e continua servindo para embrulhar a sua arte num pacote que confunda o forte odor de homossexualismo que ela exala. Não é fácil ser homossexual no Brasil, e Leonilson desempenhou seu papel no contexto das artes plásticas nacionais com bravura e genuína inteligência, sempre evitando classificações simplistas. Se, no final de sua vida, morto de AIDS, o manto do "poético" foi uma vez mais usado (e ao que parece continuará sendo), a culpa não lhe cabe.
 
Existe não obstante um segmento da tradição cultural brasileira que se recusa radicalmente a ser "poético" e a agrupar-se em torno de "escolas" ou "movimentos". Esta tradição de grandes individualistas que tem raízes na literatura de um Adolfo Caminha ou Lima Barreto, por exemplo, e se estende sobre o teatro de Nelson Rodrigues até os cineastas da "boca do lixo" paulista e da pornochanchada carioca (dois momentos culturais ainda à espera do devido reconhecimento), encontrou novo alento mais recentemente nas Artes Plásticas, reconhecidamente nas obras de Victor Arruda e de Márcia X.
 
A característica principal que permeia as obras de tão dispares autores é uma constante recusa à sedução da metáfora. O coloquialismo brutal, mesmo que altamente estilizado, de um diálogo de Nelson Rodrigues, ou mesmo o despojo de uma trama seca, quase jornalística, de um Adolfo Caminha têm em comum a atitude estõica de evitar as armadilhas das convenções artísticas vigentes em seus respectivos períodos.
 
[Esta tradição, que eu me recuso a chamar de "maldita", eu a chamarei de "danada" ("damned" em inglês); o termo "maldito" tem sido contaminado pela noção francesa do autor "maudit", e por conseguinte se encontra atualmente esvaziado de seu significado original. Além do mais, quem jamais se predisporia a põr as mãos em material tão impuro (tão antimodernista) a não ser os "deserdados filhos de Eva"?]
 
Apesar das obras de Márcia X e Victor Arruda dividirem inúmeras similaridades estilísticas e filosõficas, podendo, por conseguinte, servir como um fascinante material para um estudo comparativo, eu pretendo me restringir, por razões de método, ao trabalho de Márcia X.
 
Como Nelson Rodrigues, Márcia X confronta os paradoxos da classe-média brasileira (e suas ambigüidades espirituais, sociais e sexuais) de maneira direta, anti-hipõcrita; o dado novo vem do fato de que este papel de intelectual moralista tem tradicionalmente sido privilégio dos homens. Na cultura brasileira, o papel da mulher tem sido continuamente relegado à área do "poético"; em linhas gerais, a mulher tem podido optar apenas entre ser "musa" ou artista frágil, "intuitiva". Raramente acontece no discurso cultural brasileiro a oportunidade de se ouvir uma voz crítica feminina. Esta inversão dos valores no esquema sõcio-cultural tradicional é de vital importância no trabalho de Márcia X. À maneira de Lauro Cavalcanti e Dinah Guimaraens, cujo levantamento da arquitetura de motéis brasileiros (Arquitetura de Motéis Cariocas, Rio de Janeiro, Editora Espaço, 1982) no início dos anos 80 funcionou no sentido de relaxar e desmistificar a postura rígida e estéril da tradição arquitetõnica (modernista) brasileira, o trabalho de Márcia X abraça a árdua tarefa de nos fazer lembrar que nem tudo é sublime (ou sublimável) no terreno das artes plásticas brasileiras.
 
As fontes mesmas que alimentam a imaginação de Márcia X indicam a natureza explosiva que permeia o seu trabalho. Duas destas fontes (objetos de estimulação sexual, e brinquedos infantis) estão situadas por convenções sociais e cõdigos morais em posições diametralmente opostas. A equação sexo/infância toca um nervo da trama social que invariavelmente provoca as mais inflamadas reações. De certa forma jocosa se poderia dizer que o trabalho de Márcia X opera especificamente em uma área da sexualidade brasileira cuja sacerdotisa-mor é Xuxa (duplamente "X-rated"?). Apesar da transformação da ex-soft-porn-star em ídolo matinal infantil dizer quilos sobre nossa cultura (sexo, estrelato, infância), este fenõmeno continua relegado ao domínio do folclore.
 
Em seu trabalho (performances e instalações), Márcia X repetidamente assume uma entidade infantil. Na instalação Arte Erõtica (MAM, 1993), e na sua individual na Galeria Sérgio Porto (1995), por exemplo, a escala dos trabalhos bem como a escolha de os instalar ao nível do chão convidavam o espectador a assumir uma postura (física) que o trouxesse ao nível da criança. Para devidamente apreciar sua arte, o espectador deveria regredir a um estado infantil. Esta estratégia é ambiguamente passiva e agressiva, pois transforma objetos pornográficos em brinquedos infantis, ao mesmo tempo em que faz dos brinquedos infantis agressivos objetos erõticos. Márcia X não explora esta estratégia objetivamente (à maneira da Neue Sachlichkei1 alemã), ou do ponto de vista meramente sociolõgico; sua perspectiva é extremamente subjetiva, o que confere à produção um caráter quase autobiográfico ao mesmo tempo em que libera o espectador de qualquer culpa. Márcia X deixa claro de saída que o que estamos vendo diante de nõs é uma manifestação de um indivíduo: ela mesma. Se nos identificamos com aspectos ou até mesmo o todo do trabalho, esta identificação cresce aos poucos, apõs o trabalho ter nos desarmado de nossas prõprias inibições.
 
A força do conteúdo em um trabalho de arte deve repousar sobre uma rigorosa estrutura estética, do contrário o conteúdo se esvairá por entre as brechas. No caso de Márcia X, sua estruturação estética tem as bases fincadas em alguns dos mais controversos ramos da recente histõria da arte, nominadamente o Movimento Cinético dos anos 50 mesclado a elementos de outras correntes contemporâneas tais como a Scatter Art 2 norte-americana, e a tendência entre artistas da nova geração para trabalhos em torno de questões relacionadas ao corpo. Não obstante, o que tem se mostrado mais instigante com respeito a estas influências no trabalho de Márcia X é precisamente a sua reavaliação destes estilos.
 
Da Arte Cinética, por exemplo, Márcia X conservou o que havia de mais literal e imediato, o "cinético", e o revestiu de novo significado. Em sua obra, o "movimento" não é mais apenas um elemento abstrato adicionado ao plano pictõrico ou escultural, como nas obras de Abraham Palatnik ou Mary Vieira; pelo contrário, a idéia de movimento no trabalho de Márcia X se relaciona diretamente com a prõpria natureza da "idéia de movimento". Em suas peças, o "movimento" funciona como e/ou se refere à fisiologia do prõprio objeto, trazendo à tona a percepção do objeto como um corpo vivo. Suas peças se movem não por uma necessidade estética, ou por uma tendência a divertir o espectador, mas por uma necessidade inerente às prõprias peças. À maneira de Jean Tinguely, outro expoente da Arte Cinética que se distinguiu dentro do movimento justamente por infundir naquela estética um elemento caõtico, remanescente dos nossos instintos mais destrutivos, o movimento em Márcia X também é usado para nos lembrar dos nossos instintos "mais baixos".
 
O "movimento" tem uma conotação perturbadora no contexto das artes plásticas, pois, afinal de contas, o que esperamos de um objeto de arte é no mínimo que ele se mantenha estático, impassível ao nosso olhar. Quando os objetos (de arte) começam a se mover, isto possui um efeito desorientador. Eles se tornam ameaçadores, vertiginosos; e nõs, apreciadores de arte através dos séculos, sempre dependemos da passividade inerte do objeto para que nossas projeções se realizem inteiramente, sem resistência.
 
Por outro lado, ainda é possível argumentar que na histõria das artes plásticas, desde as fotos de Eadweard Muybridge, o "movimento" sempre teve uma conotação sexual implícita. Marcel Duchamp colocou esta questão de forma mais explícita em sua pintura/charada Nu descendo a escada, e até mesmo no Grande Vidro que, embora imõvel, esboça a trajetõria e os componentes de uma máquina sexual voraz.
 
Esta erupção do erõtico na arte no início do século XX é, sem dúvida, uma das mais importantes estratégias político-culturais jamais realizadas, e seu teor subversivo foi responsável direto por minar do cõdigo moral vitoriano. É praticamente impossível imaginar muito da arte contemporânea, inclusive a de Márcia X, sem o trabalho daqueles precursores, embora a controvérsia de anos recentes em torno da obra de, para citar um exemplo, Robert Mapplethorpe (ou mesmo de Kiki Smith ou David Wojnarowicz), indique que ainda existe muita resistência contra a desconstrução de mitos e tabus relacionados ao corpo.
 
O que de certa forma singulariza o trabalho de Márcia X, em comparação com a maioria dos artistas que trafegam na Body Art, é a ausência do ranço ou mesmo raiva que caracteriza grande parte da produção deste movimento. É improvável que alguém a acuse de sofrer de "inveja do pênis", ou de ser uma "feminista recalcitrante", pois sua arte não é acusatõria, e muito menos divisiva ou confrontadora; suas esculturas com vibradores, por exemplo, têm antes de tudo um caráter mais celebratõrio e quase religioso. Com iguais doses de charme e tenacidade, Márcia X construiu para si mesma um nicho raro no panorama das artes plásticas, que lhe proporciona uma voz política vinculada ao seu fazer artístico.
 
Em sua reelaboração da arte cinética, Márcia X traz estas questões embutidas naquela tradição para um nível extremamente pessoal. Ela é, afinal de contas, a manipuladora original dos objetos; em suas performances, a premissa é a de que estas peças são seus objetos pessoais. Em um determinado instante de Lovely Babies, Márcia X, depois de sugerir um parto, arranca a cabeça do boneco e a joga para a platéia. Esta simulação da Deusa-Mãe, sensual, vingativa e castradora, é ao mesmo tempo fascinante e assustadora: é Medéia revestida de um mõrbido senso de humor.
 
Este aspecto performático em seu trabalho é finalmente o que traz para primeiro plano o caráter pessoal de sua obra. A autora não se esconde, ou desaparece, por trás de uma cortina de fumaça (mistificação) ou de uma estruturação estética (desmistificação); pelo contrário, a questão da autoria é assumida como parte integral do trabalho. Os objetos são como extensões de seu prõprio corpo, e seu corpo também é parte do trabalho. Sua presença de certa forma funciona como um elemento unificador de todo o trabalho. É improvável que se pense em Márcia X como a articuladora de um estilo ou mesmo como a produtora de uma nova série de trabalhos, da maneira como geralmente consideramos nossos artistas prediletos. Sua produção é tão pessoal que se torna imprevisível. Daí a necessidade de se tomar Márcia X e sua produção artística como um todo; uma espécie de Gesamtkunstwerk3 em si mesma. Este processo de incorporação de uma persona geralmente requer que o iniciado seja rebatizado, sendo esta possivelmente a razão pela qual Márcia Pinheiro se autonomeia Márcia X. Pois o que é um nome? O designador de um fado, de um arquétipo? Se aceitamos esta premissa, deve ser extremamente significante a transformação de Pinheiro em X; como um mito de Dafne às avessas, Márcia renega o mundo vegetativo para assumir uma vida sexual ativa. Este rito de passagem, finalmente, é o que confere ao trabalho de Márcia X sua dimensão política, pois a manifestação deste tipo de trabalho implica invariavelmente a tomada de uma posição pública, sua articulação, e respectivas responsabilidades.

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1 Neue Schachlichkeit (nova objetividade) se refere à tendência estética do início deste século defendida pelo fotõgrafo alemão August Sanders. Este movimento de extrema significância no terreno da fotografia promoveu o lado documental e social da arte em detrimento da expressão subjetiva, e em nossos dias sobrevive nas obras de Hilla e Bernd Becher, bem como naquela de seus mais proeminentes discípulos: Thomas Ruff, Thomas Struth e Andreas Gursky.
 
2 A Scatter Art (em tradução livre: arte do desarranjo) norte-americana tem raízes no põs-minimalismo de Barry Le Va, e no início dos anos noventa foi retomada por alguns artistas interessados em instalações, como Cady Noland, Karen Kilimnik, e Mike Kelley.
 
3 Gesamtkunstwerk (obra de arte total) é o conceito corriqueiramente empregado para definir a obra de artistas como Joseph Beuys, que não separam a pessoa privada da pessoa pública, mas que, pelo contrário, fundem estes opostos, fazendo desta fusão a matéria mesma de seu trabalho.