Estética do Desconforto
Jornal do Brasil, fevereiro de 2005
 
Lauro Cavalcanti

Márcia X desenvolveu uma das mais singulares e originais trajetõrias da arte brasileira recente. Percurso realizado através de oposições duais, conciliações e tensões de contrários. A sua figura frágil de moça de classe-média carioca e a postura profissional impecável propiciavam uma economia de gestos que direcionavam a energia a favor do poder transgressor de sua obra. Transgressão e reunião. Ao lado de seu marido, Ricardo Ventura, organizou o evento Orlândia, congregando por três vezes um expressivo número das mais significativas e díspares figuras da arte do Rio de Janeiro. Isso não é pouco em ambiente pautado por caminhos solitários.
 
Uma fase de seu trabalho se constituiu em torno do estabelecimento de certo desconforto ao associar Catolicismo e sexo, assim como infância e erotismo. Tudo com muito humor e a partir de uma estética estrategicamente ingênua que potencializava a corrosão subversiva da obra. Ironia era outro elemento fundamental para abalar a indiferença do espectador. Como no balé sincronizado das Barbies ou nos falos cravejados de brilhantes ou naquele que, colocado na parede do Paço Imperial, assobiava à passagem de cada pessoa.
 
Em os Kaminhas-sutrinhas explicitava possíveis e inquietantes brincadeiras ocultas. Pertencente a uma geração que privilegiou a pintura e a celebração da alegria, Márcia lançou mão de objetos e performances para tornar mais complexa a discussão e fixar uma estética do ''mal-estar''. Como nos dois mil terços arranjados em formas fálicas com as quais povoou um centro cultural estabelecido na antiga casa de uma tradicional família carioca. Iniciada nos oitenta, a sua obra se conecta com a linguagem experimental dos anos 70 e antecipa, de certo modo, posturas que se estabeleceram na geração seguinte.
 
Nas Cavalariças do Parque Lage, em 2003, Márcia X apresentou aquele que, possivelmente, foi o mais belo de seus trabalhos. Era vedado aos espectadores penetrar no espaço da instalação, vista através das portas e janelas. Inúmeros vidros, de formas variadas, pendiam do teto, contendo pigmentos líquidos azul ultramarinos. Reflexos dos vidros das janelas multiplicavam as imagens e desconcertavam a perspectiva rotineira. Uma construção espacial e cromática de raro impacto. Vestida com uma túnica impecavelmente branca, Márcia ''acordava'' a cor, transferindo ou derramando os líquidos azuis. Que circulavam e escorriam no chão, em seus cabelos, corpo e vestimenta formando uma caligrafia de azul. Uma escrita interrompida em plena ascensão. Trajetõria que, certamente, continuará seu võo na histõria da arte brasileira.