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Sem Título Junho de 2005 Ana Teresa Jardim Reynaud Em 1995, quando eu morava em Brighton, na Inglaterra, Claudia Saldanha, curadora da Galeria Sergio Porto, estava organizando uma instalação em parceria com o Paço Imperial chamada “Correspondências”, e me pediu que escrevesse um texto. Enviou imagens e dossiês pelo correio. Além de Márcia X. e de Efrain Almeida, participaram da mostra outros artistas brasileiros e estrangeiros (entre eles Cary Leibowitz e Lily van der Stokker). Em geral, os trabalhos faziam referências a mitos religiosos e nacionais, e desenvolviam uma pesquisa formal pessoal mas precisa.
Em 1996, acabei conhecendo alguns dos artistas sobre os quais tinha escrito, e concluí que Márcia X. era a coisa mais interessante que tinha acontecido e estava acontecendo nas artes plásticas brasileiras. Em primeiro lugar, a estranheza encantadora da figura pequena mas não frágil, os cabelos muito compridos, os õculos, as roupas ‘civis’ que ainda assim evocavam uma espécie de ‘persona’ performática. Inteligente e simpática, Márcia era irreverente sem ser agressiva, bem-humorada, e jamais solene.
A partir daí, acompanhei suas exposições e performances. Entre outras, a genial “Kaminhas Sutrinhas” (MAM-RJ), “Soberba”, (Paço Imperial, 1997) e “Reino Animal”, (Paço Imperial, 1999), que consistia de barbies nuas deitadas sobre gatinhos de pelúcia que, eletricamente acionados, moviam circularmente seus rabos entre as pernas abertas das bonecas.
Além da constante atividade artística, Márcia mostrou sua generosidade e disposição ao curar e organizar em 2001 e 2003, junto com seu parceiro, o escultor Ricardo Ventura, as Orlândias, exposições que integraram artistas de várias gerações e ocuparam duas casas vazias no Rio de Janeiro. As Orlândias foram uma brecha de liberdade no circuito mais restrito das galerias e museus, e acrescentaram à exibição de trabalhos e performances excelentes e variados uma atmosfera de festa. Promoveram o encontro de público, artistas e críticos, e conseguiram até incluir trabalhos de arte feitos por críticos.
Apesar das minhas breves incursões na crítica de arte, sou escritora de ficção. Isso me faz apreciar ainda mais o alcance da obra da Márcia. Em todas as suas fases e desdobramentos, seu trabalho criou interfaces com a literatura, a filosofia, o teatro, o cinema, a dança, a sociologia, a televisão, os quadrinhos. Nesse sentido, é um trabalho verdadeiramente ‘filosõfico’ – sem citar idéias ou autores, ou cercar as obras com explicações complicadas sobre o ‘processo’ ou conceitos ali desenvolvidos, mas pelo fato de conter idéias originais, complexas e amplas que podem dialogar com outras formas de arte e pensamento.
O trabalho de Márcia X. é pop e popular. Crianças se divertiram com os falos animados e as barbies, senhoras se acotovelaram na chuva para ver a performance na qual a artista criou, dentro de uma sala das antigas cavalariças do Parque Lage, um plano celestial azul e branco. O povão do centro e dos subúrbios se juntou ao lado de garotões e garotonas bem informados da zona sul para ver a performance “Complexo de Alemão”, que ela e Ricardo Ventura fizeram nas ruas do Rio.
Não são muitos os artistas, no Brasil, que trabalham com performance. Em um país tão afeito a festas, rituais e encenações, as artes plásticas permanecem consideravelmente ligadas à agenda modernista, sua negação e exclusão das esferas da comunicação e do popular, e marcadas por um formalismo muitas vezes severo. No modernismo clássico, o artista era chamado a localizar sua expressividade no objeto, através da descoberta das condições materiais e da histõria do mesmo. Essa separação viril e quase herõica entre sujeito e objeto pretendia permitir escapar aos fantasmas do narcisismo, do trivial, e criar uma almejada universalidade.
Márcia X., artista performática, mulher, enfrentou vários tabus. Trabalhou com temas como a sexualidade, o consumo, a religiosidade, incorporou o brega, o vulgar, o pseudo-infantil. Sua obra promoveu uma virada fina nos preconceitos sociais e artísticos, intervindo nas políticas do comportamento.
Ela mesma disse, quando a entrevistei em 2001 para o Jornal Capacete Planet, que havia um grande descrédito no Brasil em relação à performance. Mas admitia que isso estava mudando, e que na Orlândia e Nova Orlândia, 16 entre os 100 trabalhos apresentados haviam sido performances. Lembrou que a Geração 80 não produziu apenas pintores, mas havia alguns, como ela, Alex Hamburger e Ricardo Basbaum, que trabalhavam com performance. Mas como os anos 80 haviam coincidido com a emergência de um mercado de arte que tinha mais facilidade de negociar a pintura, ela se destacou mais. Uma das razões para esta retomada e uma melhor aceitação da performance era o grande reconhecimento internacional do Tunga.
Em trabalhos como “Bufê Bugiganga” e “Fábrica Fallus”, Márcia se utilizava de gadgets comprados no centro do Rio, no chamado Saara, um paraíso kitsch que lhe fornecia materiais que não são normalmente cobiçados por artistas plásticos mais ‘sérios’. Depois, no que se poderia chamar de sua ‘segunda fase’ – de performances mais orgânicas em que o elemento de brincadeira com o mecânico não estava tão presente – Márcia fez uso do seu prõprio corpo e imagem, tendo participação mais direta e ativa nas performances. Mergulhar num tanque de coca-cola, tomar banho de leite moça, calçar galos nos pés, desenhar com terços, lavar terços, peneirar farinha, entre outras ações. É interessante pensar na sua coragem de criar e performatizar a Márcia X. em um país onde a apresentação e instalação do feminino assumem formas tão convencionais, e a aparência e a beleza importam tanto que temos uma primazia das cirurgias plásticas embelezadoras. Performer de uma geração posterior a de Orlan, Márcia não transgrediu tão violenta e radicalmente a tirania das normas de beleza feminina, mas ainda assim deixou um legado de possibilidades de experimentação com a mesma. As camisolas brancas, as saias brancas pregueadas e blusas que pareciam uma mistura de uniforme escolar (com todas as conotações “pornõ”) e farda de santo daime, os cabelos longuíssimos, tudo isso era ‘concebido’ de forma a sugerir limites muito sutis, ativar a imaginação, e vinha com um componente de humor agregado. As performances dessa fase eram pungentes e intensas, como visões muito peculiares, perturbadoras e densas.
Impressionante era o rigor formal com que Márcia, exímia designer, tratava todos os elementos dos trabalhos. Tudo era belo, impecável, calculado e ao mesmo tempo surpreendente. Falando sobre “Ação de Graças”, por exemplo, Márcia contava que a performance havia nascido, por um lado, da idéia de preparar bichos para comer e, por outro, da existência das pantufas de pelúcia em forma de bichos, coelhinhos e gatinhos que se vê por aí. Uma atmosfera de alucinação foi criada para a performance a partir destas experiências quase banais, mas que já são estranhas. Havia, entretanto, uma forte ligação entre a experiência sensorial anterior e sua formalização, de modo que os aspectos físicos e visuais da performance continham e expressavam a crueza e o maravilhamento da vivência e das associações originais.
As duas últimas performances apontavam novos caminhos e eram de certa maneira misteriosas em relação ao futuro. Em 2005, Márcia X. e Ricardo Ventura mostraram, no edifício Gustavo Capanema, “A Cadeira Careca” (“La Chaise Chauve”), uma referência a Le Corbusier, à histõria da arquitetura e do design.
“Alviceleste” aconteceu em 2003, no Parque Lage. Vestindo uma camisola branca, Márcia ia virando funis de vidro cheios de tinta de caneta azul pendurados no alto teto da sala das antigas cavalariças do Parque Lage. As paredes e o chão eram brancos. Os repositõrios de vidro pendiam de correntes finas de metal através das quais a tinta de caneta azul escorria até o chão, formando desenhos aleatõrios. Márcia e o chão branco iam sendo ‘desenhados’ e manchados pela tinta azul, que formava uma caligrafia sublimada e fantasmática, feita de traços e resíduos das repetidas e exatas ações da performer. Havia na instalação-performance uma inequívoca idéia de céu, de um outro plano, mesmo que não necessariamente metafísico. A peça fazia lembrar certos trabalhos muito vitais de Yves Klein, por causa dos resíduos, das impressões e do azul, e por tratar o espaço material de forma que sugeria o imaterial. Vi ali uma forte associação com a escrita, como se uma histõria ou narrativa fosse aparecendo através da repetição da ação, cujo resultado remetia tanto à pintura, desenho, quanto a uma espécie de escritura.
“X is currently preparing a new installation piece to be shown at Galeria Anna Maria Niemeyer next March”, foi o que noticiei, quando ela já estava doente, na coluna que acaba de sair na revista Contemporary. E não era sõ isso que estava por acontecer. Há convites para expor no Centro de Estudos Brasileiros, em Buenos Aires, e expor em Londres com o apoio do Living Institute.
Demorou o reconhecimento pleno e merecido do seu importantíssimo papel nas artes plásticas brasileiras. Ficamos com seu imenso e inspirador legado, e com o fato de ela ter aberto caminho para artistas e obras que virão. Mas fica também um vazio, sem sua presença inigualável. O que fazer? Nem tudo são rosas. Mas tudo é alviceleste, prá quem soube entrar e passear no Universo X.
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Ana Teresa Jardim Reynaud é escritora de ficção, doutora em Cinema pela Universidade de Sussex, no Reino Unido, e Professora Adjunta da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO. É correspondente internacional da revista inglesa Contemporary, para a qual contribui com uma coluna sobre arte contemporânea brasileira. |
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