Natureza Humana

Andar pelo Saara no centro do Rio de Janeiro é vivencíar muitos aspectos da cultura brasileira e da carioca em particular. Entre as ruas da Alfândega e da Carioca, Gonçalves Dias e Campo de Santana, sobrados coloniais, neoclássicos e art-nouveau abrigam lojas de artigos populares. Neste territõrio, os rastros de vários tempos se misturam numa confusão que envolve brinquedos, enfeites, perucas, doces, incenses, e toda sorte de parafernália eletrõnica "importada" do Paraguai. Igrejas barrocas, hotéis, teatros, botequins, a Faculdade Federal de Filosofia e o Centro Cultural Hélio Oiticica completam o ambiente.
 
Mais do que em qualquer outro ponto da cidade é no Saara que se concentram as cores mais estridentes e os brilhos mais cintilantes. Seu comércio é o paraíso do kitsch e da novidade. Lugar certo para achar ferramentas para as mais variadas técnicas artesanais e sortimentos para adeptos do faça-você-mesmo. Como num universo paralelo suas lojas se encontram repletas de artificializações, desatualidades e imitações baratas.
 
Comprar materiais no Saara para fazer esculturas, instalações e performances significa me apropriar de aspectos simbõlicos destes materiais, combinando objetos, imagens e ideias deste universo, associando meu imaginário a elementos do imaginário social relativo a sexo, religião, infância, morte, masculino e feminino.
 
Entrar e sair por estas portas é uma parte importante no processo de elaboração do trabalho que venho desenvolvendo ao longo dos anos. Tomar a cidade como uma experiência impregnante, que envolve todos os sentidos, participando do fluxo das multidões e dos objetos me leva a refletir a cultura que lhe é prõpria. Usar elementos tão conhecidos e acessíveis acaba por estabelecer com o público uma relação imediata. O movimento e o som conferem características performáticas aos trabalhos, potencializando esta proximidade.
 
A série Fábrica Fallus (1993-2005) tem como principal componente pênis de plástico comprados em sex-shops. Estas engenhocas sexuais são modificadas pela junção com diversos materiais: pompons, espelhos, medalhas, rendas, etc. Anõnimos e impessoais nas prateleiras das lojas, acabam por incorporar "personas" diversas, transformando-se em objetos simultaneamente fálicos e femininos, pornográficos e infantis, sagrados e profanos. As peças que utilizam vibradores se movimentam pelo chão, se encontram e se afastam, rodopiam percorrendo o espaço, formando ao acaso uma estranha coreografia.
 
Na instalação "Os Kaminhas Sutrinhas" (1995), trinta pequenas camas coloridas ocupam o chão da galeria. Sobre elas duplas e trios de bonecos sem cabeça executam uma mímica sexual. Cada cama tem um conjunto de lençol e travesseiros com tecidos de motivos infantis e enfeitados com galões bordados. Os tecidos, os bordados e as posições dos bonecos não se repetem. As roupas assim como as cabeças foram retiradas, restando somente corpos desprovidos de signos de identificação de género masculino-feminino. Os bonecos se encaixam uns nos outros atados por finíssimos cabos de aço. Projetados originalmente para engatinhar, movem braços e pernas enquanto o chip musical entoa "It's a small world" música tema da Disneylândia. Um pedal permite que o público acione todos os bonecos ao mesmo tempo. A cacofonia de sons intensifica a violência da movimentação mecânica contranstando com o visual adocicado.
 
A instalação Soberba (1997) procura tecer relações entre signos do imaginário erõtico e da religiosidade brasileira, tomando como referência imagens da religião catõlica e da umbanda.
 
Milagre, uma das peças foi produzida a partir de uma boneca "made in China". Loura, vestida com uma roupa comprida de veludo azul, segura uma coroa dourada nas mãos. Ao se deslocar na frente do trabalho o público faz com que a boneca mecha a língua repetidamente.
 
Outro trabalho presente em Soberba é feito com um pênis de plástico de trinta centímetros enfeitado com peças de metal dourado. O pênis se projeta da parede deixando pender dezenas de correntes finíssimas com medalhinhas nas pontas. Cada medalha tem um pequeno retraio de uma pessoa diferente. Ele assobia para quem passa na sua frente, fazendo que o observador se sinta observado.
 
Imagem é um trabalho de seis peças feito conx bonecos de plástico sem cabelo. Como é comum em brinquedos, o corpo é sexualmente ambíguo. Os joelhos e os pés tem articulações que lembram os esqueletos de madeira dos santos barrocos. Pequenas lâmpadas foram colocadas dentro dos bonecos. Pontos de luz com auréolas vermelhas iluminam partes do corpo.
 
"Caso existisse aquela "alma das mercadorias" de que às vezes Marx brincando falava*, ela seria a mais delicada que se poderia encontrar no reino das almas. Pois ela deveria ver em cada um o comprador em cuja mão e em cuja casa ele gostaria de se aninhar. " Walter Benjamim O Flâneur - A Paris do segundo império em Baudelaire, Editora Ática 1985 * Marx, K, Das Kapital pg. 95